or que Ostras Azuis?

Na infância tive um sonho lúdico, sonhei que vivia numa cidade no fundo do mar e que o meu ofício era "garimpar" ostras azuis. Estas ostras possuíam, no seu interior, pérolas de todas as cores, cheias de luz (energia), que serviam de alimentação a todos os habitantes da cidade.

Percebo agora o que significam essas OSTRAS, elas são na verdade todas as ideias que encantam e alimentam a alma. Portanto este espaço azulado pertence a todos aqueles que se alimentam de:

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terça-feira, 10 de janeiro de 2012

A poeta que não sabia amar

Por Antonio Naud Júnior

De personalidade complexa, cristalina e sem artifícios, Hilda Hilst, a autora de “Qadós”, continua sendo lembrada três anos após sua morte.


A última palavra que ouvi da boca de  Hilda Hilst  soou terrível, como uma punhalada mortal: “Judas!”, disse-me emocionada, chorando. Era o fim de um bonito relacionamento, causado por  um  modesto ensaio de 14 páginas, “Hilda Hilst – A Consciência Inquieta e Atormentada”, sobre a sua vida e obra, que eu havia escrito com a única finalidade de presenteá-la de forma original no dia dos seus 62 anos. Semanas antes, ingenuamente, havia enviado cópias do texto para alguns amigos da autora de “A Obscena Senhora D” (1982), pedindo confirmação a respeito de alguns fatos abordados. Um deles (ou mais de um?) aproveitou a situação para num golpe fulminante cortar a minha cabeça, já que em todos os reinos existem ciumeiras e intrigas. Afastado da abelha-rainha, nunca mais voltei a vê-la. Logo eu, um garotão maluco por ela, que amava passar finais de semana na sombria Casa do Sol, um sítio próximo de Campinas.

Encantado com a voz bonita, de tom articulado e grave, desfiando histórias picantes, eu ria com o humor demolidor da idosa dama desiludida. Conversávamos fervorosamente sobre extraterrestres, experiências místicas, Deus, poesia, filmes, atores, cineastas. Ela me perguntava coisas sobre a minha vida, impressionada com o meu nascimento numa fazenda de cacau. Também muitas vezes eu cozinhava ou preparava chás, já que a escritora não sabia fritar nem um ovo; nos braços, colocava-a para dormir, embriagada, além de divulgar sua produção literária na mídia, dentro de minhas minúsculas possibilidades, e insistir para que concedesse entrevistas. Num dos nossos melhores momentos, comovido, acompanhei o nascimento dos versos de “Do Desejo” (1992), profundos como um oceano, que ela finalizou sem qualquer correção, como sempre o fez nos livros anteriores. Entretanto, percebi imediatamente que Hilda Hilst nunca estava satisfeita, queixando-se quase sempre, querendo mais. Nada era bom o bastante, nem os prêmios literários, nem as traduções de sua obra para o francês e o italiano, nem os elogios de consagrados críticos literários. Hilda me parecia radiante, iluminada, fraterna, mas terminaria por descobrir um coração ferido, uma luta constante entre o instinto de sobrevivência e a autodestruição.

NINHO DE VÍBORAS

Acusado injustamente, o boicote brutal me fez perder um bom emprego e as portas de diversos conhecidos meus, escritores e jornalistas, fecharam-se. Assim, aprendi cedo que o mundo literário é um ninho de víboras, tão selvagem como qualquer campo de batalha. Entretanto, qual o motivo da censura imperdoável ao tal controverso ensaio? O que escrevi, a poeta de “Cantares de Perda e de Predileção” (1983) contava abertamente, encantadora e sarcástica, rodeada de estudantes de literatura ou poetas de todo o Brasil, como uma moderna Sherazade, entre uma dose de uísque ou outra e muitos cigarros, enquanto assistíamos a telenovela das oito, sem jamais pedir segredo e traduzindo uma confiança inabalável em seu passado irreverente. Talvez o ponto vulnerável estivesse em uma vivência relatada oralmente, vista de uma só vez estampada no papel. Mas por que eu deveria seguir os passos da maioria dos narradores da história da polêmica escritora, omitindo fatos essenciais e ficando apenas na exuberância superficial? Eles, quando contam algo incômodo, em carne viva, entornam mel, praticamente pedindo perdão ao leitor e, principalmente, a biografada. É difícil cavar o fosso entre o mito e a realidade. Segundo um dos personagens de Dostoievski, “um homem saciado não pode compreender um faminto e nem mesmo um faminto pode compreender um outro”. O evidente é que Hilda Hilst nunca se preocupou em ocultar sua vida privada. Parecia não ser importante para ela.

ALÉM DE BONITA, PENSA E ESCREVE

O ensaio percorre labirintos ouvidos, diversas vezes, dos lábios da própria poeta: o pai, o fazendeiro de café e jornalista, Apolônio Almeida Prado Hilst, tentando seduzi-la num manicômio; a demência irrecuperável da mãe, Bedecilda Vaz Cardoso, após encontrar o amante bem mais jovem, um piloto, com outro homem na sua própria cama; na Livraria Planalto, no centro de São Paulo, a mocinha Hilda saboreando chá quase que diariamente com Oswald de Andrade e sua turma, e ouvindo deles: “além de bonita, pensa e escreve”; a virgindade perdida aos 20 anos, sem compromissos, por livre e espontânea vontade; a atração pueril pelo astro Marlon Brando, levando-a a pernoitar no Ritz de Paris e terminando por espiá-lo na intimidade lúbrica com o galã francês Christian Marquand, depois de subornar um segurança do hotel; anos de futilidade e luxúria, vestida quase sempre com modelitos de Denner, da Casa Vogue ou de Madame Rosita; os namorados ricos que lhe ofereciam jóias, peles, viagens para o exterior e até um Mercedes-Benz; os pileques e farras no seu sofisticado apartamento da Alameda Santos, em São Paulo, com uma turma de famosos que incluía Jô Soares, Mira Schaendel, Cassiano Gabus Mendes, Renata Pallotini, Bráulio Pedroso, Massao Ohno, Lupe Cotrim, Raul Cortez, Eva Wilma, Cacilda Becker, entre outros; os amantes descartáveis recolhidos em bares, restaurantes e rodovias; o horror a mulheres e crianças, as quais chamava de “crionças”, que a levou a fazer abortos; coisas notáveis em matéria de mediunidade; gravações de vozes do além através de ondas radiofônicas; vultos assombrados passeando pelo jardim; o alcoolismo; a velhice mal-resolvida, incomodando-se com rugas, flacidez, cabelos brancos ou a pele muito clara cheia de manchas de senilidade; o planeta Marduk, aonde iria depois da morte etc. Tamanha parafernália deveria fazer parte de qualquer biografia honesta de Hilda Hilst, um dos maiores ícones literários brasileiros do século 20. Ela os revelava com detalhes para quem quisesse ouvir, entre uma torrente de palavrões, muitas vezes caindo na gargalhada, noutras se ensopando de lágrimas.

HIPER LUCIDEZ E LIBERDADE

Mesmo descartado, jamais deixei de amá-la, lembrando até hoje da sua beleza, porte, inteligência, cultura e talento. Ela foi a figura mais admirável, lúcida, livre e inteligente que conheci. Ao saber da sua morte, realizei um ritual em sua homenagem, em pleno inverno catalão nas montanhas dos Pirineus, lendo poemas de seus poetas mais amados: Holderlin, John Donne, Rainer Maria Rilke, Fernando Pessoa, Jorge de Lima, T. S. Elliot, René Char, Saint John Perse e Federico Garcia Lorca. Hilda Hilst morreu solitária, depois de longos meses de enfermidade, com falência múltipla dos órgãos, em 3 de fevereiro de 2004, às 3 da manhã, magrinha, alojada numa aparência de 90 anos, ela que foi uma das mulheres mais lindas de sua época - parecida com a atriz sueca Ingrid Bergman; namorou astros de Hollywood (Tony Curtis, Jeff Chandler e Dean Martin) e o milionário Howard Hughes (o mesmo do filme de Martin Scorsese, “O Aviador / The Aviator”, 2004); ela que um dia recusou pedido de casamento de Vinícius de Moraes e o assédio de Carlos Drummond de Andrade, que lhe dedicava poesias eróticas e a seguia timidamente pelas ruas do Rio de Janeiro.

AVERSÃO AO MOVIMENTO CONCRETISTA

Lembro que Hilda levantava por volta das dez horas, passava óleo de amêndoa na pele e caminhava lentamente até o canil, alimentando 15 cães vira-latas. Depois iniciava o seu trabalho, sempre numa máquina Olivetti portátil. Ela vivia nesse tempo com o salário razoável de artista residente da Universidade de Campinas, que injustamente terminaria por ser cortado. Aproximando-nos ainda mais, tínhamos o mesmo livro favorito, “O Morro dos Ventos Uivantes / Wuthering Heights” (1847), de Emily Brontë. Ouvíamos as sinfonias de Gustav Mahler, fazíamos leituras de poesias e eu me emocionei quando descreveu com perfeição a aparência doentia do escritor mineiro Lúcio Cardoso, que ela conhecera na década de 50. Entre o lirismo e o escracho, esbravejava contra a mediocridade renitente, não apreciando o relato com começo, meio e fim. Tinha aversão ao concretismo e duvidava da consagração acadêmica, no exterior, de Machado de Assis. “É mentira. Machado só é lembrado no Brasil porque faz parte do currículo escolar, caso contrário seria esquecido e não faria falta”, afirmava. Egocêntrica e hipocondríaca, tomava vitaminas em excesso por uma simples gripe. Odiava ser chamada de poetisa, achando que o feminino diminuía a grandeza do poema, e renegava quase todos os escritores e poetas brasileiros, somente apreciando Clarice Lispector, Guimarães Rosa e Jorge de Lima.

SENTIR MAIS, DEFINIR MENOS

Mesmo atualmente com suas obras completas (40 livros em 19 volumes) sendo publicadas pela Editora Globo, e seu arquivo no Cedae da Unicamp, disponível para pesquisas, a escritora paulista passou anos em luta contra o esquecimento, o desdém do público e da crítica. De ascendência ibérica do lado da mãe e franco-alemã do lado do pai (os Hilst vieram da Alsácia, região entre a França e a Alemanha), nasceu em Jaú, no interior de São Paulo, em 21 de abril de 1930, estudou Direito na Faculdade do Largo do São Francisco, sem nunca ter exercido a profissão, e lançou o seu primeiro livro em 1950, “Presságio”. Lia em francês, inglês e espanhol, mas não falava nenhuma língua muito bem. De rara beleza, comportava-se na juventude de maneira avançada, numa desregrada vida boêmia, escandalizando a sociedade paulista e despertando paixões sem futuro. Em 1966, depois da leitura de “Cartas a El Greco / Raport Catre El Greco”, a última obra do grego Nikos Kazantzakis, escrita em 1956, resolveu abandonar essa vida fútil, procurando sentir mais a cintilância do invisível e definindo menos a realidade. Mudou-se para a Casa do Sol, transformando completamente seu cotidiano, passando a enxergar entidades e tendo vivências fora do corpo. Publicou uma série de obras em ficção e poesia (seu teatro, bastante ruim, permanece inédito), destacando-se a obra prima “Fluxo-Floema” (1970), “Qadós” (1973, o livro favorito dela), “Da Morte. Odes Mínimas” (1980) e “Amavisse” (1989). Em 1992, escandalizou o mercado editorial e seus leitores fiéis com “O Caderno Rosa de Lori Lamby”, uma pequena e risível novela supostamente pornográfica.

À PROCURA DE DEUS

Encontrei Hilda Hilst pela primeira vez alguns meses antes da publicação de “Contos D’Escárnio / Textos Grotescos” (1990). Na ocasião, era mais conhecida por uma espécie de anedotário do que pela leitura de seus escritos. Chamavam-na de louca, visionária, bruxa, cortesã e até de porca histérica em reportagem do jornal francês “Libération”. Porém, quisessem ou não, já era um dos pilares da literatura brasileira. Sua vasta obra, seja de poesia ou prosa, é densa, marcada pela busca incessante da individualidade e da procura ingrata de um Deus não-religioso. Hermética, vasculha uma realidade além do visível, além do palpável e do pensamento lógico. Utiliza a linguagem de forma especial e vigorosa, como meio de desestruturação, reformulação e catarse. “Existe um grande preconceito contra a mulher escritora. Você não pode ser boa demais, não pode ter uma excelência muito grande. Se você tem essa excelência e ainda por cima é mulher, eles detestam e te cortam. Você tem de ser mediano e, se for mulher, só faltam te cuspir na cara”, dizia. Entretanto, exagerava. Foi bem-sucedida ainda em vida, comentada, estudada, elogiada, pouco lida, evidente, contudo são raros os grandes escritores populares. O crítico literário Leo Gilson Ribeiro chegou a defini-la como “o maior escritor vivo em língua portuguesa”. Brilhante e desbocada, sentia saudades da juventude rica e glamourosa, em que era paparicada por todos. Paupérrima nos seus últimos anos, sofria por isso, pedindo dinheiro emprestado e driblando credores. Já havia vendido as obras de arte e todo o patrimônio que possuía para suprir necessidades imediatas. A péssima situação financeira fez com que escrevesse para a Fundação Nestlé rogando leite para alimentar seus estimados cães. Na sua conturbada biografia, calçada em alegrias e tragicidades fervorosas, inclui-se amizades vulcânicas, fatais, vertiginosas, entre a generosidade e a tormenta. O seu temperamento inconstante a fez perder inúmeras e preciosas amizades, às vezes com controvérsias irreversíveis e brigas homéricas, como o episódio do lançamento de uma antologia, onde quebrou um copo e ameaçou sangrar a escritora Edla van Steen, pois esta não parava de chamá-la, sussurrando, de meretriz. Caio Fernando Abreu, que morou um ano em seu sítio, fez primorosas entrevistas com a escritora e resenhas sobre seus livros, depois se tornou persona non grata para todo o sempre. Nunca soube realmente o motivo da inimizade deles, nem ele nem ela conseguiam explicá-la claramente. Hilda o acusava de falsidade, de perversidade e de escrever uma literatura estúpida. Ele sofria com isso.

O MEDO DE AMAR

Certa vez, num dos nossos passeios no enfeitiçado jardim da Casa do Sol, pouco antes do anoitecer, cheia de afetividade e mistério, disse-me que tinha medo de amar. Hilda Hilst acreditava que ninguém era feito para um outro: “Essa história de bossa alma gêmea é parvoíce. Coisa de folhetim e filmecos melosos”, afirmava áspera, preferindo acariciar o dorso indomável da fera-solidão. Ela zombava do amor. Casou-se com o escultor Dante Casarini pressionada por sua mãe conservadora, talvez cansada de vê-la solteira e alvo de línguas ferinas. Belo e cúmplice, Dante foi uma companhia bondosa. Poucos anos depois, trocado por um escritor de origem espanhola, José Luís Mora Fuentes, de 17 anos (Hilda beirava os 40), solidário, continuou a ampará-la. Houve uma época em que ela se apaixonou pelo jornalista e boxeador João Ricardo Barros Penteado e, por fim, pelo primo Wilson Hilst, vinte anos mais jovem. Ciumento e dominador, ele costumava presenteá-la com flores e chocolates, contudo, sua paranóia renitente acabou por levá-lo a aprisioná-la, durante alguns dias, no seu quarto. Ela teve uma espécie de obstinação romântica por Júlio de Mesquita Neto, apelidado por ela de Lili e um dos diretores do jornal Estado de S. Paulo. Escreveu para ele os extraordinários poemas de amor de “Júbilo, Memória e Noviciado da Paixão” (1974), recentemente musicados por Zeca Baleiro. Infelizmente, ele não aceitava a vida libertária da poeta e evitou a união. No entanto, Hilda Hilst jamais amou de corpo e alma. O seu temperamento diferente parecia não compreender tal sentimento, por mais que escrevesse sobre ele. Talvez só tenha amado seus cães feios e barulhentos, sua literatura, uísques, cigarros e sua própria figura na flor da juventude. Mesmo assim, não é pouca coisa.

FRAGMENTOS... DE CARTA DE HILDA HILST PARA ANTONIO NAUD JÚNIOR

“Você me fala do teu poço, Naud, meu baiano bonito, o poço há de ser sempre, as vezes com água mais clarinha, outras vezes com lama, bosta etc. Todos nós que escrevemos somos, queiram os outros ou não, diferentes mesmo, não há jeito. Eu sei que nada tenho a ver com as bestas-feras que habitam o planeta, acho mesmo que somos totalmente diversos, o olho vê mais fundo, a comoção é intensa, maior, fulgurante, tudo nos toca nos comove, nos mata nos aterroriza, o planeta Terra é muito bonito mas ficará amerdalhado totalmente logo mais, tenho profundo desprezo pelos homens políticos de agora de sempre, são todos uns filhos da maior puta, e nós nas mãos deles, cago para todo o Sistema de bosta, pra tudo, não desejo coisas além da solidão muito grande, só aqueles que fazem parte da minha família, isto é os escritores, os de intensidade verdadeira, os que sofrem de piedade e compaixão, as vezes penso que não vou agüentar continuar a existir vendo tanta crueldade, tanto horror. Também meu poço existe, também não tenho nada a ver com cidades, as vezes vou para SP para lançar um livro, como você sabe, chego lá tomo mil porres, ninguém tem nada a dizer, é a mesma baboseira de todos. Naud, nós todos temos problemas, saiba viver com os seus, te foi dado essa coisa tão difícil que é o ato de escrever, o sentir agudo o talento, você é um escritor e pronto, arranje um trabalho de bosta qualquer, meio período, mude-se para um pequeno lugar, você não é casado, não tem filhos para sustentar, escolha o lugar onde quer morar, arranje umas colaborações em revistas jornais, escolha a tua própria vida, faça a sua própria vida... “
(25 de dezembro de 1990)

DE TEXTO INÉDITO DE HILDA HILST

“O grande escritor que foi John Cowper Powys (“In Defense of Sensuality”), homem extraordinário e cultíssimo teceu loas à masturbação, e ressaltava a importância da mesma como forma de dominar impulsos perigosos. Pensem na eficácia desse ato supimpa libertando instintos assassinos e sádicos. E hoje então, meu povo, diante da Aids que grassa como guanxuma grama capim, que maravilha seria! Atenção: exibicionistas não! O ato pode ser realizado entre castas paredes, ah! teu corpo nu entre castas paredes, invente, imagine por exemplo um tanque de nenúfares (procure no dicionário), ou um bidê coalhado de maçãs, branco e carmim, teu neurônio ativado relembrando coalhadas e beijos, benditos instantes entre o teu-eu e o teu-sim. Ah! a derme cravada de desejo! Ternas ou torpes associações, relembranças, tudo tudo menos isso de sair por aí esfolando boi vaca bode cachorro gato e depois criancinhas homens mulheres. Vamos a campanha da mão em concha!”
(“A Mão em Concha”, 1990)

DE CORRESPONDÊNCIAS

“Hilda, grande figura:
Conte, conte as coisas que às vezes atrapalham V., se acha que com isso elas se desatrapalharão um pouco. Eu farei o mesmo. Conversaremos muito, e chegaremos a grandes conclusões sobre a vida, que, segundo os últimos autores, não é bem aquela coisa ruim que a gente pensava que fosse – e sim um negócio meio chato, com alguns clarões matutinos: por exemplo, V. e suas cartas.
Se bem que, falando sério, não acredito muito na viabilidade do seu projeto de sermos “muito amigos e muito honestos um para o outro”, assim por meio de cartas, e na base de um conhecimento meteórico de uma noite em casa de amigos e de uma conversa de bar. Sinto-me muito literário diante de V., muito defendido pelas minhas barbas brancas (que não aparecem, mas que V. por certo enxerga em mim), e V. por sua vez muito dona de si na sua beleza, na sua mocidade, na sua aisance de jovem que sabe dos seus poderes em face dos homens, e ainda por cima inteligente e ainda por cima poetisa. Não, Hilda, por enquanto o que nós somos um para o outro é obscuro e difícil de explicar, mas desconfio que V. seja ou esteja simplesmente curiosa – afinal, um velho poeta modernista, como é que será por dentro?“
(Carlos Drummond de Andrade, 6 de novembro de 1950)


“Sinto, Hildinha, a necessidade de penetrar numa outra dimensão, num outro nível de existir. Têm me doído o corpo e suas solicitações. Também não quero negar a carne, sei que se esse corpo nos foi dado é para que o usemos da maneira mais intensa possível, até ultrapassá-lo, até conseguir, através dele, atingir o mais alto. Acontece que, quase sempre, as vontades do corpo são baixas e escuras. Também por causa dessa maldição (?) homossexual, você sabe, os rituais, os bares especializados, essas coisas. É tão difícil. Quando cedo a isso, por desespero, tenho terríveis crises de consciência, depois. Crises que sei inúteis, desgastantes, porque mais dia menos dia voltará a ciranda do sexo. Se fosse possível um relacionamento claro entre duas pessoas, se eu conseguisse encontrar alguém que me completasse, que fosse completado por mim, que me saciasse o corpo para que o espírito pudesse voar. Espero isso, quase sempre sem procurar. Mas quando caio na procura, volto decepcionado, ferido, frustrado, enfraquecido. As pessoas têm medo da entrega. É mais fácil, menos comprometedor, diluir-se na ciranda dos bares, das saunas, do deboche. As pessoas têm medo de se doarem. E seria tão bom, tão melhor. Essa é a minha maior preocupação espiritual, e não tenho conseguido divisar a solução, o equilíbrio. Não quero a prisão da carne, também não quero a sua perdição. Não quero tornar-me nem amargurado nem debochado. Não sei.”
(Caio Fernando Abreu, 14 de maio de 1972)

O AUTOR

Escritor, poeta e jornalista, o baiano Antonio Naud Júnior descobriu a literatura aos 12 anos. Começou publicando no Cacau/Letras, editado por Hélio Pólvora, e seguiu com ficção e poesia na revista Exu (Brasil), New Wave (EUA), Go (Espanha) e V_Ludo(Portugal). Participou de várias antologias e publicou sete livros, sendo que quatro deles em Portugal. Vive para viajar. Passou longas temporadas no Rio de Janeiro, São Paulo, Natal, Madri, Barcelona, Cádiz, Paris, Lisboa, Sintra, Cascais, Havana, Santa Cruz de Graciosa (Açores), Londres, Edimburgo, Firenze e Colônia. Foi free-lancer dos jornais Folha de S. Paulo, O Tempo (MG) e A Tarde (BA). Mora atualmente em Salvador, escrevendo para jornais e revistas do Brasil, Portugal e Espanha. Finaliza a novela “Homem sem Caminho”, uma versão contemporânea de “Carmen”, de Prosper Merimée. Publicou recentemente “Suave é o Coração Enamorado” (Via Litterarum, 2006).

antonio_junior2@yahoo.com


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